Impactos potenciais da revisão no Código Florestal, em tramitação no
Congresso Nacional, na biodiversidade e nos serviços ecossistêmicos
foram debatidos por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento
nesta terça-feira (3/8), em evento organizado pelo programa
Biota-Fapesp, na sede da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (Fapesp).
Carlos Alfredo Joly, coordenador do Biota-Fapesp e professor da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), abriu o encontro
lamentando a falta de participação da comunidade científica nas
discussões sobre as alterações no atual Código Florestal, que preveem,
por exemplo, reduções significativas nas áreas de preservação
permanentes (APP) e anistia a desmatamentos feitos até 2008.
Essa nossa crítica foi destacada em uma carta assinada pela Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia
Brasileira de Ciências (ABC), as duas maiores representantes da
comunidade científica, disse Joly. As duas entidades deverão ampliar
as discussões sobre o assunto por meio de um grupo de trabalho.
Ricardo Ribeiro Rodrigues, professor da Escola Superior de Agricultura
Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), que
coordenou o encontro junto com Joly, ressaltou que a proposta de
revisão do código ensina importantes lições à comunidade científica,
entre elas a importância de tomar iniciativas de mudanças antes que
outros o façam.
O Código Florestal atual vigora desde 1965 e nós [pesquisadores] não
tínhamos nos preocupado em atualizá-lo até hoje, disse Rodrigues,
ressaltando a importância da pesquisa científica para sustentar
políticas públicas.
Na parte da manhã, cientistas apresentaram os impactos que grupos
taxonômicos específicos poderiam sofrer no caso de ser aprovada a
proposta do novo código aprovada pela Comissão Especial da Câmara dos
Deputados.
Os palestrantes foram convidados a usar suas apresentações como ponto
de partida para artigos científicos, que serão submetidos para
publicação na próxima edição da revista Biota Neotropica.
Lilian Casatti, professora do campus de São José do Rio Preto da
Universidade Estadual Paulista (Unesp), falou sobre possíveis impactos
aos peixes. Um dos principais problemas da proposta de revisão do
código, segundo ela, seria a redução na largura das matas ripárias,
que acompanham os cursos d'água, de 30 metros para 15 metros em
riachos e ribeirões com menos de 5 metros de largura.
De acordo com a pesquisadora, isso afetaria a ictiofauna em vários
aspectos. Sem a cobertura vegetal ciliar os peixes estariam mais
expostos à luz solar. Espécies que possuem larvas sensíveis à radiação
ultravioleta seriam reduzidas. Peixes que utilizam a identificação
visual para selecionar parceiros também seriam prejudicados e várias
cadeias tróficas seriam irremediavelmente alteradas.
Muitos peixes se alimentam de determinados insetos que, por sua vez,
alimentam-se de certas folhas dessas matas. Há estudos apontando que,
com menos matas, os peixes perdem biomassa. causando perdas genéticas
e até de espécies, disse.
A perda da cobertura vegetal ripária também causaria o aumento na
turbidez dos rios devido ao assoreamento, o qual também provocaria a
entrada de poluentes no curso d'água.
Um dos maiores prejuízos seria a extinção de diversas espécies de
peixes. Estudos realizados no Estado de São Paulo mostram que o maior
número de espécies está concentrado em pequenos córregos. No Estado,
foram encontradas 344 espécies, do total de 2.587 peixes brasileiros
de água doce, e 66 estão ameaçadas, sendo que 45 vivem em pequenos
ambientes.
Essas espécies vivem em apenas 10 metros quadrados, em média, durante
toda a vida, disse Lilian, para ilustrar que até perdas de pequenas
porções de vegetação natural podem resultar no desaparecimento de
diversos táxons.
Segundo a professora da Unesp, os pequenos cursos d'água guardam uma
grande diversidade genética que estaria ameaçada após as mudanças no
Código Florestal. A região de São José dos Dourados (SP), estudada por
Lilian, possui 4 mil quilômetros de pequenos rios enquanto que o rio
principal tem apenas 220 quilômetros.
Nessa região, entre 61% a 78% dos córregos já estão cercados pela
plantação de cana-de-açúcar, eles não podem se dar ao luxo de ter mais
áreas reduzidas, afirmou.
Problemas agravados
Felipe Toledo, do Museu de Zoologia da Unicamp, falou sobre os
possíveis impactos em anfíbios. Habitantes da água, dos biomas
terrestres e das áreas de transição entre ambos, os anfíbios seriam um
dos grupos mais afetados pela redução das matas ripárias.
Em todo o mundo, os anfíbios formam o grupo mais ameaçado da natureza,
com 32,5% das espécies sob risco, disse. Bastante sensíveis às
alterações ambientais, os anfíbios já são afetados pelos efeitos das
mudanças climáticas globais, que secam trechos de riachos e
lagos,expondo ovas a predadores e intempéries.
Por respirar através da pele, o grupo também tem sentido os efeitos do
uso de defensivos agrícolas, sendo registrados muitos casos de má
formação de sapos e rãs que os tornam presas fáceis de predadores.
Todos esses problemas seriam agravados com a aprovação das mudanças no
Código Florestal, segundo Toledo.
Como agravante, muitos anfíbios dependem de espécies específicas de
plantas para se reproduzir. Alguns só se acasalam em bromélias, outros
em certos tipos de bambus e uma espécie de rã depende de plantas com
folhas dobráveis para o acasalamento. A perda desses vegetais poderia
também representar o desaparecimento dos anfíbios que deles dependem.
Os impactos potenciais nos répteis foi apresentado por Otávio Marques,
pesquisador do Instituto Butantan. O grupo taxonômico tem 20% de suas
espécies sob ameaça de extinção em todo o planeta e a maior causa
disso seria a perda dos habitats, o que seria agravado com a aprovação
da proposta que está no Congresso.
O atual código também erra ao permitir a compensação de uma área
desmatada com a preservação de outra área dentro do mesmo bioma. Uma
espécie que habita um local pode não viver em outro, afirmou.
Sob o ponto de vista econômico, o país perde com a perda da
biodiversidade. Anfíbios e répteis fornecem moléculas complexas que
podem ser aplicadas em fármacos. O anti-hipertensivo desenvolvido a
partir do veneno da jararaca rende US$ 5 bilhões ao laboratório que o
criou, exemplificou Marques.
A ausência de anfíbios e peixes provocaria um aumento nas populações
de insetos, representando um aumento de doenças na população e de
pragas na agricultura, resultando em maior necessidade de agrotóxicos.
Novas doenças surgiriam no gado originadas pela perda do habitat de
cervos, segundo apontou Mauro Galetti, professor do campus de Rio
Claro da Unesp, que analisou os efeitos potenciais da revisão do
Código Florestal sobre os mamíferos.
A proximidade do gado com os cervos que perdem seus ambientes provoca
trocas de doenças entre as duas espécies. Boa parte dos mamíferos
prefere viver próximos a matas ripárias e, de acordo com Galetti, a
redução dessas matas exporia os animais a predadores, a caçadores e a
acidentes como atropelamentos.
O ornitólogo Pedro Ferreira Develey, da Save Brasil, apontou que
muitas aves dependem de pequenas ilhas de vegetação nativa, sendo que
várias espécies não saem dessas matas. Elas tem fotofobia e estão
acostumadas a viver na sombra, por isso não saem para áreas abertas,
disse.
O Brasil tem 17 de suas espécies de aves ameaçadas de extinção
habitando matas ripárias, por isso, reduzir esses biomas poderia ser o
golpe de misericórdia para algumas delas, destacou Develey.
Vera Fonseca, professora do Instituto de Biologia da USP, falou sobre
possíveis consequências para abelhas da proposta de revisão do código
. Responsáveis pela polinização de boa parte da produção agrícola
brasileira, o desaparecimento de espécies desses insetos seria um
desastre para inúmeras culturas, como o maracujá, o açaí, o cupuaçu e
a castanha-do-pará, disse.
Giselda Durigan, do Instituto Florestal, falou sobre o Cerrado, onde
estão localizadas as principais bacias hidrográficas do Brasil. O
bioma, ao mesmo tempo, é considerado o celeiro do país, por concentrar
boa parte da produção agrícola nacional. A cientista narrou os
esforços de se recuperar a vegetação nativa do Cerrado, em muitos
casos impossível, devido ao alto nível de degradação do solo.
José Galizia Tundisi, do campus de São Carlos da USP, falou sobre os
impactos hídricos que a redução de cobertura vegetal nativa prevista
no novo código poderia trazer.
Reduzir as matas ciliares que agem como tampões de proteção atingiria
diretamente a qualidade das águas, aumentaria a toxicidade, reduziria
ainda mais o nível dos rios por causa de assoreamento e encheria a
água de sedimentos, aumentando o custo do tratamento, disse.
Segundo Tundisi, na região do Baixo Cotia, em São Paulo, por exemplo,
o custo para tratar mil metros cúbicos de água é de cerca de R$ 300.
Em comparação, o tratamento da mesma quantidade em uma cidade que
possui rios com proteção de matas ciliares em seus mananciais cai para
R$ 2.
A própria agricultura seria prejudicada. Aumentar a área agrícola
reduzindo a mata ciliar reduzirá a água disponível. É um tiro no
próprio pé, disse.
Conservação com expansão
Sérgius Gandolfi, da Esalq-USP, previu um apagão hídrico e citou como
exemplo a usina hidrelétrica de Assis Chateaubriand, no Mato Grosso do
Sul, que viu seu reservatório desaparecer por causa dos danos causados
aos pequenos rios que o abasteciam.
Gandolfi também criticou vários aspectos da proposta de revisão do
Código Florestal, como a previsão de concessão de incentivos aos
produtores rurais à guisa de incentivo ao reflorestamento.
Isso é o mesmo que fazer o governo pagar para que industriais instalem
filtros em suas fábricas. No Estado de São Paulo são 324.601
propriedades rurais, se o governo gastar R$ 10 para cada uma, serão
mais de R$ 3 milhões em dinheiro público gastos para pagar uma
obrigação dos produtores, comparou.
O pesquisador também chamou a atenção para uma alteração que reduz
ainda mais a área preservada. A versão atual do Código Florestal
considera a margem do rio no período de cheia, chamado de leito maior.
Entre as alterações previstas na revisão está a medição das margens a
partir do leito menor, quando o rio está mais baixo.
O assoreamento atingiria principalmente os rios mais frágeis, ou seja,
os menores, que são cerca de 90% dos rios do país, disse Gandolfi.
Rodrigues apresentou o programa desenvolvido na Esalq-USP de adequação
ambientais de propriedades rurais. Sua equipe encontrou diversas
propriedades com possibilidade de aumentar a área agrícola sem ferir o
atual Código Florestal. Não estão usando toda a área a que têm direito
para plantar, disse.
Esse projeto de lei [a revisão do Código Florestal] veio em um momento
muito ruim, pois vários proprietários rurais já estavam se
conscientizando sobre a importância de cumprir o código atual, disse
Rodrigues, ressaltando que aqueles que se comprometeram a recuperar as
áreas vigentes serão punidos com as alterações no código.
Geld Sparovek, também da Esalq-USP, explicou por que a conservação
ambiental não impede a expansão das fronteiras agrícolas, apresentando
vários estudos que mostram possibilidades de crescimento da área
plantada sem atingir a vegetação a ser preservada.
Novo debate e alternativas
Nos encaminhamentos finais do encontro, os participantes decidiram que
os sumários das apresentações serão encaminhados ao grupo de trabalho,
organizado pela SBPC e ABC, que vem discutindo a proposta de mudança
do Código Florestal.
Os palestrantes também se comprometeram a participar de uma segunda
reunião, quando será apresentado um documento executivo que proponha
alternativas.
Os pesquisadores concordam que é preciso rever e atualizar o Código
Florestal Brasileiro, pois nas últimas décadas aumentou
consideravelmente o conhecimento científico tanto em termos da
biodiversidade brasileira como em termos da biologia da conservação,
ecologia da paisagem e serviços ecossistêmicos.
Portanto, o país tem condições transformar esse conhecimento em
políticas públicas, como fez o Programa Biota-Fapesp aqui no Estado de
São Paulo. Na avaliação dos pesquisadores, o substitutivo aprovado
pela Comissão Especial do Câmara dos Deputados vai na contra mão do
avanço do conhecimento, representando um grande retrocesso na
legislação ambiental brasileira caso venha a ser aprovado pelo
Congresso Nacional, afirmou Joly.
Outra proposta, que ainda será avaliada, será a organização de um
debate com representantes da comunidade científica, políticos e
jornalistas do país e do exterior. O objetivo é tornar o debate
público e mais acessível a toda a sociedade, pois mais de 80% da
população brasileira vive em cidades e talvez não tenha condições de
avaliar adequadamente as consequências das alterações propostas no
Código Florestal, disse.
A reunião foi excelente pela qualidade das apresentações. Os
pesquisadores já estavam preocupados com os aspectos salientados, eles
já estavam trabalhando com essas questões há tempos. Isso demonstra
uma consistência muito grande entre pesquisadores de diferentes áreas.
Vamos reunir essas informações em um documento que sintetize o que foi
apresentado para que, com ele, possamos abrir espaço para uma
discussão mais ampla com lideranças do Congresso Nacional, disse Joly.
(Fabio Reynol)
(Agência Fapesp, 4/8)
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